“Quando eu falo da pobreza todos me chamam de cristão, mas quando eu falo das causas da pobreza me chamam de comunista. Quando eu falo que os ricos devem ajudar os pobres me chamam de santo. Mas quando eu falo que os pobres têm que lutar pelos seus direitos, me chamam de subversivo”.
Estas palavras de Dom Hélder Câmara retratam ainda hoje a opinião de muita gente. Mas atribuir a luta pelos direitos dos pobres e o engajamento pela justiça social aos ideários ideológicos da esquerda implica desonestidade intelectual, ignorância ou má fé.
Sendo verdadeiro que praticar a justiça é dar a alguém o que lhe é de direito, precisamos nos perguntar de onde vem o direito humano de ter direitos. A resposta da tradição judaico-cristã se encontra já na primeira página da Bíblia Sagrada: “criou Deus o homem à sua imagem e semelhança” [Gênesis 1.26,27].
A tradição rabínica ensina que, ao criar um só homem, Deus criou todos os homens. Em cada ser humano está toda a raça humana. A noção da igualdade intrínseca entre todos os seres humanos é a base de sustentação de todos os direitos humanos. Todo mundo tem direito a ter direito. O direito de um ser humano é direito de todos os seres humanos.
Portadora da imago Dei, a vida humana tem valor divino, e, justamente por isso, Deus é seu maior guardião: “Quem derramar sangue do homem, pelo homem seu sangue será derramado; porque à imagem de Deus foi o homem criado” [Gênesis 9.5,6].
A justiça, nos termos de equidade entre todos os seres humanos, é usada para afirmar a identidade de Deus e apresentá-lo a Israel. Timothy Keller enxergou que “o Deus da Bíblia se diferenciou dos deuses de todas as outras nações como um Deus que defende os fracos e faz justiça aos pobres”: “Pois o Senhor, o seu Deus, é o Deus dos deuses e o Soberano dos soberanos, o grande Deus, poderoso e temível [...] que defende a causa do órfão e da viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe alimento e roupa” [Deuteronômio 10.17-19], e também: “Ele defende a causa dos oprimidos e dá alimento aos famintos. O Senhor liberta os presos, o Senhor dá vista aos cegos, o Senhor levanta os abatidos, o Senhor ama os justos” [Salmo 146.7,8].
A justiça social é expressão cúltica e devocional requerida por Deus: “O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo?” [Isaías 58.6,7].
A justiça social é marca distintiva dos justos de Deus: "Suponhamos que haja um certo justo que faz o que é certo e direito [...] Ele não oprime a ninguém, mas devolve o que tomou como garantia num empréstimo. Não comete roubos, mas dá a comida aos famintos e fornece roupas para os despidos. Ele não empresta visando lucro nem cobra juros. Ele retém a sua mão para não cometer erro e julga com justiça entre dois homens [...] Aquele homem é justo” [Ezequiel 18.5-9]. Jó foi apresentado na Bíblia não apenas como um homem bom, mas como justo (tzadik), que praticava a justiça (tzedaká).
A justiça social é critério para o julgamento das sociedades e das nações: “Ora, este foi o pecado de sua irmã Sodoma: Ela e suas filhas eram arrogantes, tinham fartura de comida e viviam despreocupadas; não ajudavam os pobres e os necessitados” [Ezequiel 16.49]. Também Jesus sublinhou a justiça social como régua para juízo: “Eu tive fome, e vocês não me deram de comer; tive sede, e nada me deram para beber; fui estrangeiro, e vocês não me acolheram; necessitei de roupas, e vocês não me vestiram; estive enfermo e preso, e vocês não me visitaram” [Mateus 25.31-46].
O cuidado dos órfãos, das viúvas, dos pobres e dos estrangeiros, isto é, pessoas em situação de vulnerabilidade, não é opcional diante de Deus: “Assim diz o Senhor: Administrem a justiça e o direito: livrem o explorado das mãos do opressor. Não oprimam nem maltratem o estrangeiro, o órfão ou a viúva; nem derramem sangue inocente neste lugar” [Jeremias 22.3].
Jesus era herdeiro da tradição de Israel, e seus ensinos e práticas foram coerentes com a noção de justiça da Lei e dos Profetas. A referência profética que escolheu como porta de entrada para seu ministério público deixou absolutamente clara sua agenda de solidariedade divina com o pobre, oprimido e sofredor: “O Espírito do Senhor está sobre mim porque o Senhor ungiu-me para levar boas notícias aos pobres. Enviou-me para cuidar dos que estão com o coração quebrantado, anunciar liberdade aos cativos e libertação das trevas aos prisioneiros, para proclamar o ano da bondade do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; para consolar todos os que andam tristes, e dar a todos os que choram em Sião uma bela coroa em vez de cinzas, o óleo da alegria em vez de pranto, e um manto de louvor em vez de espírito deprimido. Eles serão chamados carvalhos de justiça, plantio do Senhor, para manifestação da sua glória” [Isaías 61.1-3]. Digno de nota é o fato de que, ao ler a profecia de Isaías na Sinagoga de Nazaré, Jesus omite a expressão “o dia da vingança”. Seguir a Jesus implica dizer sim para a justiça que se faz com amor. (Ed Rene)
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