Um dia desses, ouvi a seguinte estorinha: um pai advertiu várias vezes o filho para que não cometesse determinado erro, senão o colocaria de castigo, inclusive explicando o porquê. Entretanto, o menino desobedeceu. Agora, o pai teria que resolver o que fazer: castigar ou esquecer. Diferentemente, ele chamou o garoto e disse: “filho, vamos tomar sorvete?”.
A estória fala sobre a diferença entre “justiça”, “perdão” e “graça”. Para agir com justiça, o pai deveria simplesmente castigar o filho. Para agir com perdão, não aplicaria a pena. Mas ele preferiu ser gracioso com o menino.
Embora eu não seja um admirador deste tipo de estorinhas modernas que metaforizam Deus, por achar que a maioria delas reduz a ideia que tentam expressar, essa me chamou a atenção.
Definitivamente, mesmo diante de nossas repetidas desobediências, Deus resolve não nos tratar conforme merecemos. Seria justo que “morrêssemos todos os dias” por sermos maus, mas o Filho se fez justiça em nosso favor e nossos pecados de cada dia foram cravados em uma cruz. Deus resolve nos perdoar e, mais que isso, nos “chama para tomar sorvete”. A graça é Deus nos chamando para tomar sorvete. Um verdadeiro escândalo.
Não há como negar a justiça eterna de Deus ou a responsabilidade pessoal do ser humano por seus atos ou coisa parecida, mas cabe a reflexão acerca de como lidamos diariamente com nossos vacilos e como isso se reflete na forma como nos encaramos quando tentamos encarar Deus.
Muitos de nós temos grande dificuldade de não apenas compreender, mas também viver a graça. Por mais que repitamos que “não há nada que façamos para que Deus nos ame mais ou ame menos”, é dura a tarefa de relacionar-se com Deus sem o intermédio de regras, normas e ainda sem a famigerada lei do merecimento e da barganha.
Afinal, é assim que ensinamos nossos filhos: “comporte-se bem e será recompensado”, enquanto que a mensagem recebida é: “se eu for um bom menino, serei mais amado”.
Entre nós e Deus, criamos a religião que, tão repleta de rituais, protocolos, artefatos, símbolo e intermediadores, por vezes nos impede de enxergar o próprio Deus. Quando a religião se torna religiosidade, nos autoflagelamos através dos fardos que atamos a nossas próprias costas, como advertiu Jesus: “Então, Jesus disse à multidão e aos seus discípulos: Os mestres da lei e os fariseus (…) atam fardos pesados e os colocam sobre os ombros dos homens, mas eles mesmos não estão dispostos a levantar um só dedo para movê-los” (Mt 23:2-4).
Por não conseguirmos aceitar a graça de Deus, que nos retira qualquer mérito por algo que recebamos dEle, passamos a viver em constante estado de “medo”, uma palavra que jamais deveria ser associada ao caráter de Deus. Quando vivemos sob a suposta ameaça do castigo divino, imediatamente somos submetidos a duas consequências. A primeira é a falsa ideia de que devemos seguir à risca determinada cartilha religiosa para não sermos punidos. Inventamos regras para que, uma vez cumpridores das mesmas, possamos receber de nós mesmos e dos outros o “reconhecimento” e os “títulos” de bons religiosos, mesmo que nossos corações estejam absolutamente distantes do coração do Pai e daquilo que Ele de fato enxerga e quer de nós.
A segunda consequência é o enorme fardo que passamos a carregar, por não conseguirmos ser bons como gostaríamos. Passamos, então, a viver externamente de modo a sustentar nossas aparências e, internamente, em constante estado de medo de que a iminente vingança divina se manifeste, pois no fundo somos conscientes de nossa maldade mais profunda. E a culpa acaba por nos afastar de Deus. E, por consequência, nos impede de experimentar plenamente a graça.
O pai chama o filho para tomar sorvete. E a história acaba assim, pois nem todo filho aceita o convite. Muitos se abstêm por não se considerarem dignos, num claro sinal de orgulho e auto justiça. E rejeitam o perdão, a misericórdia, o socorro e, em última análise, o próprio Deus.
Todas as nossas tentativas de nos tornarmos justos diante de Deus são ineficazes. Por isso, não só para 2016, mas para toda a vida, tenho me desafiado e convido você para uma aventura existencial que talvez jamais tenha experimentado: a de tomar sorvete com Deus. Porque Ele convida. Porque Ele nos ama. Porque seu Filho já pagou a conta. Porque somos alvo de sua graça. (Artigo de Edilson Holanda)
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