quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Isaías 35.1-10

Auxílio Homilético
Prédica: Isaías 35.1-10
Leituras: Mateus 22.23-33 e 1 Coríntios 15.12-20
Autor: Roberto E. Zwetsch

Proclamar Libertação - Volume: XXXVIII
Deus vem! O sertão vai virar mar!
1. Introdução
A poesia é uma das mais conhecidas características da profecia desse profeta do século 8 a.C. Provavelmente nascido em Jerusalém e membro das classes mais abastadas, revelou-se um crítico severo da monarquia e dos pecados do povo, não se conformou com a hipocrisia piedosa dos que se apoiavam no templo e na religião, tornando-se assim um profeta que incomodava muitos em Jerusalém. Apesar de tudo, essa era a cidade amada por ele como a “eleita de Javé”, para a qual caminhariam mais tarde os exilados da Babilônia (35.10).
O atual livro de Isaías é certamente resultado de um longo processo de redação, coleta de oráculos ou palavras proféticas que remonta a um exaustivo e paciente trabalho de muitos estudiosos da palavra de Deus ou da escola de Isaías. Os pesquisadores normalmente diferem entre si sobre a composição do livro, mas com segurança podemos encontrar três partes bem delimitadas nesse livro: a) os capítulos 1-39 (aí está inserido o capítulo 35 desta pregação); b) 40-55, conhecido como o Segundo Isaías, pois os textos supõem a experiência do exílio babilônico; c) 56-66, possivelmente um trabalho redacional que remonta a épocas distintas da história mais recente de Israel, mas que a vincula aos tempos históricos do profeta Isaías.
Um pesquisador conclui de forma bem interessante essa história da redação ao afirmar que, apesar de todas as circunstâncias complicadas, o livro atual apresenta-nos uma mensagem coerente e instigadora, que chama à conversão, que implica mudança de vida e a prática da justiça e do direito. Isaías não se conforma com as injustiças, mas anuncia um Deus justo – que julga os governantes, destrói impérios, liberta os fracos – e também um Deus salvador, que traz esperança a partir de crianças (7.3; 8.3; 9.6s) e de um resto de povo vencido, exilado, mas que permaneceu fiel no meio da aflição e do desterro.
Ao reler Isaías 35, não pude deixar de lembrar a profecia de Antônio Conselheiro, o líder leigo religioso do Movimento de Canudos no final do século 19 no sertão nordestino. Criticado e perseguido pelo império brasileiro, com apoio da igreja oficial, Conselheiro foi um profeta popular que apenas queria justiça e procurou levantar o ânimo de sua gente e insuflar nela uma réstia de esperança. É dele provavelmente a famosa frase-profecia: “O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”, muito ao estilo das profecias bíblicas, aí incluídas a de Isaías.
2. Sobre o texto de Isaías 35
A linguagem é poética e traz a mensagem de uma visão de futuro envolta em figuras de grande expressividade. O deserto se alegrará, os lugares abandonados florescerão como os montes do Líbano, do Carmelo e o vale de Sarom, regiões conhecidas por sua fertilidade. Esses símbolos juntam-se ao motivo das águas que rebentarão no deserto, delas saindo ribeiros que anunciam abundância e nova vida para os que retornam de longe. A terra desolada voltará a produzir, porque os mananciais de água voltarão a regar os campos e a areia queimada pelo sol abrasador. No meio coloca-se outro sinal dessa renovação da vida e da esperança. Aos desalentados se dirá uma palavra: Sejam fortes, porque Deus vem! Não é preciso ter medo. Ele vem e vingará os que sofrem injustiça. Ele virá para salvar e resgatar. E, como consequência, os olhos dos cegos abrir-se-ão, e os ouvidos dos surdos ficarão desimpedidos. Coxos não apenas voltarão a andar, mas saltarão de alegria, enquanto os mudos não só voltarão a falar, mas cantarão como sinal de uma novidade radical. E tudo isso será possível porque se abrirá um caminho santo no meio da desolação, da destruição e do deserto. Um novo êxodo se anuncia: caminho de libertação pelo qual somente os resgatados caminharão. Esse caminho, porém, será vedado aos animais ferozes (diferente de Isaías 11) e aos impuros, aos que praticam o mal e a injustiça. Por fim, nessa visão extraordinária de salvação, os que retornam do exílio voltarão a habitar Sião – destruída que foi – para, quem sabe, reconstruí-la em alegria e gozo, afugentando a tristeza e o gemido dos sofredores.
A meu ver, contudo, essa visão grandiosa só poderá ser bem compreendida se considerarmos que Isaías 35 deverá ser lido em conjunto com o capítulo 34, no qual temos o outro lado da moeda. Nesse, vemos estampada de forma cruel a matança de Edom, que é apresentada como terra incendiada e arruinada, habitada por animais selvagens e sem possibilidade alguma de restauração. Os símbolos do poder político e religioso foram aniquilados. O redator ainda exaspera o leitor ao afirmar que será necessário ler o “livro do Senhor” para entender as razões de tamanha destruição (34.16). A terra voltará a ser repartida entre algumas famílias, e somente no futuro haverá possibilidade de alguma vida habitável naquele lugar.
Essa profecia – que talvez aponte para a futura queda da Babilônia (“Edom” seria então um símbolo) – não deixa de trazer uma palavra de esperança de recuperação de terras perdidas, a possibilidade de no futuro experimentar libertação.
A mensagem de Isaías 35 talvez fique mais evidente se fizermos a comparação
entre os dois capítulos:
      Edom (34)                                                 Sião (35)
Terra calcinada/destruída                    Terra florescente/verdejante
Feras selvagens                                 Ausência de animais selvagens
Grande matança                                Volta dos exilados/libertados
Muitos cadáveres                               Cura dos mutilados/libertação física
Ninguém caminha pela terra                Caminho santo para os que retornam
Dia de ira e vingança                           Vitória e alegria, fim da tristeza
Mas mesmo a visão de esperança que o capítulo 35 anuncia e comemora tem limites. Ela não se dá na cidade de Jerusalém, mas a caminho de Sião, em meio à marcha dos libertados, o que supõe a derradeira confiança no Libertador de Israel, o salvador de “seu povo”, o povo que se voltou para seu Deus e assumiu a dura caminhada de retorno à terra, à casa, ao país destruído. Essa volta exigirá constância e disposição para sair do conforto da opressão (ainda que ela seja terrível, é segura) para a insegurança da marcha pelo caminho da salvação. O texto surpreende ao afirmar que quem arriscar esse caminho não errará, nem mesmo o louco. A caminhada de libertação, por vezes, exige a disposição para fazer certas “loucuras” (o mesmo motivo temos em Paulo, cf. 1Co 1).
Croatto chama a atenção para detalhes importantes: nessa cidade destruída pelos caldeus, o templo não é mencionado. Sião é apenas um lugar de libertação, o que significa que todo o trabalho de reconstrução ainda está por ser feito. E Javé voltará a ocupá-la junto com seus adoradores.
As metáforas estão ligadas à transformação da natureza, que, como as pessoas, expressa sentimentos de alegria e júbilo por sentir-se restaurada pela profusão das águas. Até parece que a natureza se antecipa à salvação que o povo-resto irá experimentar.
Outro detalhe importante: os destinatários da mensagem não são os líderes do povo, mas são justamente os portadores de deficiências; os v. 5-6 mencionam cegos, surdos, coxos, mudos, pessoas que, impedidas por alguma deficiência, expressarão a salvação que Javé está para desencadear. E o que se vê nessas pessoas especiais é a alegria da libertação. Não se trata de milagres extraordinários, mas antes o fato de que justamente as pessoas mais frágeis e desqualificadas é que anunciam um novo tempo. Nos v. 6-7, os pares de figuras deserto/alegria e deserto/água apontam para uma nova era de vida, em que a terra será fértil e produzirá fruto abundante. A vinda de Javé (ele vem do futuro para o presente) acontece em meio a uma grande marcha dos resgatados, dos que confiaram nele e na força da vida, apesar de toda a realidade de opressão, miséria, abandono e destruição. Os que voltam devem preparar-se assim para uma grande festa de libertação (o mesmo motivo reaparece em 51.11). Essa visão traz consolo, ânimo, renova as forças, fortalece as mãos frouxas, firma os joelhos dos que vacilam, levanta os desalentados de coração, alma e espírito (v. 3-4).
A frase final do v. 10 encontra sua sequência natural no cap. 40.1, em que um novo bloco do livro de Isaías inicia. Mas no meio foram inseridos textos históricos que remetem a outras experiências do povo de Israel (36-39).
3. A caminho da prédica
Imagino que a pregação desse capítulo de Isaías trará muita alegria ao pregador ou pregadora. Pois sempre é melhor anunciar salvação do que destruição e desolação. Mas penso que o desafio está justamente aí: a mensagem de salvação só faz sentido se temos claro a que ela se refere, a que situação ela responde com metáforas belíssimas de uma natureza renovada e preservada e com o anúncio de um caminho novo, santo e bom no meio do deserto da injustiça e da desigualdade que humilha e faz sofrer.
Proponho que se faça um exercício duplo como desafio à comunidade. Primeiro, olhar para a nossa realidade e tentar descrevê-la da forma mais crua possível. Estou escrevendo este auxílio homilético em meio às maiores manifestações populares que o Brasil já viu desde a Campanha das Diretas Já (1984) e do Fora Collor (1992). Algo novo começa a ser forjado em nosso país a partir da mobilização do povo nas ruas, de gente de muitos segmentos sociais, com predominância de jovens e estudantes, mas também com a presença de aposentados, pessoas idosas, famílias inteiras com crianças e até bebês de peito (!), engravatados e mesmo funcionários públicos.
A indignação contra uma série de desmandos, injustiças, malversação de recursos públicos, privilégios inconcebíveis numa sociedade democrática é apresentada em faixas, cartazes escritos à mão (na era da informática), de modo que os governantes ficaram atônitos, sem entender o que se passa. Suas respostas até o momento são pontuais e nem de longe respondem a tudo o que as ruas começam a proclamar e a exigir, pacificamente ou, em muitos caos, destrutivamente (com depredações, incêndios e até invasão e roubos criminosos). Mas, mesmo nesses casos, é preciso interpretar a que vem esse ódio refreado e que, ao ser expresso, vem com fúria incontrolável.
Então, reler o capítulo 35 de Isaías e perguntar-se: como pregar sobre uma visão que anuncia
* “o deserto e a terra se alegrarão, e o ermo exultará e florescerá como o narciso”;
* “fortalecei as mãos frouxas e firmai os joelhos que vacilam”;
* dizendo aos desalentados: “Sede fortes, não tenham medo”?
Será muito importante apontar como é que “Deus vem”. Ele não vem como um general para conquistar a cidade arrasada, nem vem como um justiceiro para vingar todo sangue inocente. Entendo que sua “vingança” e sua “retribuição” terão outra conotação. Por isso o júbilo incontido no texto, a alegria que transparece já desde a renovação do “deserto” e dos lugares destruídos, desde a natureza comprometida pela obra humana e o lugar do desconsolo dos abatidos e vencidos pela sanha dos poderosos. A força de Javé, Deus libertador, mostra-se desde “baixo”, desde os cansados e sem força, desde os cegos pelo brilho de uma sociedade desigual e corrupta, desde os ouvidos fechados dos que sofreram sob as bombas e as máquinas que matam, desde os emudecidos porque jamais foram ouvidos (Deus, porém, escuta o clamor dessas pessoas humildes e desgarradas), desde os privados do direito de caminhar, de ir e vir, reservado apenas aos que mandam, aos que governam e apropriam-se da cidade até que ela fique deserta e sem vida. É a partir dessas pessoas, desses grupos e comunidades aparentemente sem força alguma que Deus vem e salva. Ele abre um caminho no meio da apatia e do isolamento e restabelece as condições da luta histórica, da marcha para a liberdade. Esta mensagem precisa ser anunciada aos quatro ventos: Deus vem! O sertão vai virar mar! Nenhuma opressão é absoluta, nenhuma cidade permanece para sempre sob o domínio da injustiça e da desfaçatez. Deus vem e salvará seu povo faminto, cego, sofrido. Deus abrirá os olhos e os ouvidos de sua gente, levantará os enfraquecidos e que não podem andar. Como o próprio Isaías profetizou (25.8): “Tragará a morte para sempre, e assim enxugará o Senhor Deus as lágrimas de todos os rostos, e tirará de toda a terra a ignomínia, a desonra do seu povo, porque o Senhor falou”. É por isso que, no dia em que lembramos a memória de nossos queridos já falecidos, podemos ter esperança. Porque Deus é Deus de vivos e não de mortos. Ele irá resgatar também da morte aqueles que já partiram na justa esperança da ressurreição. O mesmo Isaías é quem afirma: “Assim será a palavra que sair da minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me dá prazer e prosperará para o que a designei” (55.11).
4. Subsídios litúrgicos
Hinos:
HPD 2, 441 – Um pouco além do presente; HPD 2, 310 – Da cepa brotou a rama; HPD 2, 316 – Semente de libertação; HPD 2, 336 – Quando o povo se reúne.
Oração:
Senhor, Deus Misericordioso, quando estamos tristes, tu nos levantas e descortinas o horizonte da liberdade e da alegria. Quando fraquejamos na fé e na solidariedade, tu vens e nos acordas do sono da tranquilidade infeliz. Quando somos lentos para agir, tu nos chegas por meio das ruas que clamam por justiça, direito e solução. Ah, ó Deus de amor e paixão, quando vamos aprender a ouvir a tua palavra, que nos vem na hora certa e na hora incerta, na celebração do culto e nas fainas da vida, nos sonhos e na desdita? Ajuda-nos a compreender o teu evangelho e a tua profecia. E não nos deixes acomodados. Por amor de teu Filho Jesus, na unidade do Espírito Santo. Amém.
Símbolo:
Talvez o texto sugira colocar na frente da comunidade um caminho com muitas flores e ramos verdes, caminho que leve para uma fonte de água pura, símbolo de uma nova cidade e uma nova vida. Na frente do caminho, colocar um cartaz: Deus vem e chama a gente para ir com ele no caminho santo da justiça e do direito!
Bibliografia
CROATTO, J. Severino. Isaías. A palavra profética e sua releitura hermenêutica. V. I: 1-39. Trad. Jaime A. Clasen. São Paulo: Vozes, Imprensa Metodista, Sinodal, 1989.
MOSCONI, Luís. Profetas da Bíblia. Gente de fé e de luta. 3. ed. São Leopoldo:CEBI, 1998.

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