Nos capítulos anteriores de João você vai perceber que a decisão de ir para a Galileia interrompe o contato
de Jesus com o grupo de João Batista. O chamado de
novos discípulos indica que alguns deles não pertenciam ao
grupo.
João Batista orientava através de sua pregação a seguirem a Jesus de forma espontânea. No entanto, Filipe recebe o convite diretamente de Jesus.
Não foi discípulo de João Batista. Filipe era de Betsaida,
aldeia de André e de Pedro, situada na parte norte do lago
da Galileia, na rota para a região pagã, também chamada de
Cesareia de Filipe (Mc 8,27-30). Politicamente, não pertencia
à Galileia. O nome Betsaida significa "pescaria ou lugar de pesca". Ao mencionar a procedência comum de Filipe
e dos dois irmãos, André e Pedro, o evangelho de João
insiste neste ofício para eles. Filipe e André aparecerão no
episódio dos gregos João 12.20-22), primícia da missão entre
os pagãos. A procedência de Betsaida, lugar de fronteira e
composto de uma população mestiça, já indica a capacidade
desses dois para o trabalho missionário entre os não-judeus.
Sobre o chamado de Filipe, o evangelho de João não podia
ser mais conciso. Para seguir Jesus, é suficiente escutar o seu
imperativo: "Segue-me". É tudo.
Filipe conduz Natanael a Jesus
Repete-se o esquema anterior. A necessidade de comunicar
a experiência feita com Jesus, visível antes em André,
aparece agora em Filipe, que vai buscar Natanael. Esse personagem,
ao contrário dos demais discípulos, não recebe nenhuma
apresentação por parte do evangelho de João. Porém
é apresentado como alguém já conhecido. Será mencionado
de novo somente depois da ressurreição de Jesus, integrado
no grupo dos sete João 21.2). Certas tradições identificam
Natanael com o apóstolo Bartolomeu. Filipe fala a Natanael
no plural: "Encontramos aquele ..... João 1.45). Retrata aqui a
presença de um grupo de discípulos que se movem ainda na
esfera das antigas instituições. São israelitas apegados à Lei,
que veneram a antiga Escritura.
No primeiro momento, Jesus, o Messias, não representa
novidade, é o continuador da antiga tradição. Para eles, Jesus
será o Messias, conforme a mentalidade do Antigo Testamento.
Esses discípulos, que não foram discípulos de João
Batista, não perceberam ainda a ruptura com a antiga instituição.
Embebidos e apegados em suas tradições, concebem
o Messias como o continuador de Moisés. Os profetas do
Antigo Testamento, muitas vezes, descreveram a futura salvação
em termos de restauração da monarquia de Davi. Daí
foi tomando corpo à ideia de um Messias político, que seria
o sucessor de Davi, o renovador das instituições. Era a tradição profética que mantinha a esperança do Messias.
É Jesus, filho de José, de Nazaré
Natanael significa "dom de Deus". É um verdadeiro israelita.
Não tem falsidade. Reconhece Jesus como "o rei de Israel".
Jesus responde para todo o grupo com uma novidade.
É ele a verdadeira escada que une o céu à terra; a mesma
escada que Jacó já tinha visto em sonhos (Gn 28.10-22).
Depois, Natanael o chamará de "Filho de Deus", embora
Jesus se atribua a si mesmo como "Filho do Homem". Filipe
identifica Jesus pela sua família de sangue, bem como
o lugar de sua procedência. Em Jo 6.24, Jesus voltará a ser
identificado por seus adversários como "o filho de José".
Aí, "o filho" denota, na verdade, sua paternidade legal. A
expressão "aquele descrito pelos profetas", sugere o Messias
descendente de Davi. Portanto, Jesus seria, para Filipe, o
Davi redivivo, que teria de realizar a unidade de Israel e
levar a nação à glória.
A indicação dessa procedência de Jesus, no caso de Nazaré,
indica algo mais. É o único ponto que Natanael retoma em
sua pergunta. No momento da prisão, os guardas buscam
a Jesus de Nazaré. Também no letreiro da cruz aparecerá
a inscrição "Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus". A confissão
final de Natanael "Tu és o filho de Deus, o Rei de Israel ",
antecipa o título da cruz.
Vem e vê
À primeira vista, a reação de Natanael é negativa e sem
muita esperança. A conexão entre Messias e Nazaré lhe parece
impossível. Ninguém esperava um Messias procedente
da Galileia, a região da periferia composta por uma população
mestiça. Há certa ironia na pergunta de Natanael e,
quem sabe, também uma grande desconfiança e até mesmo
um desprezo diante do convite. Em Lc 4,16-30, vemos que
os próprios habitantes de Nazaré não aceitaram Jesus como
Messias. Diante da indiferença de Natanael, Filipe o convida a fazer ele também tal experiência. As palavras são tais
e quais às que Jesus usou para convidar os dois discípulos anteriores. Porém, aqui, o convite de Filipe refere-se à pessoa
de Jesus e não ao lugar. É a experiência na dinâmica do
Espírito.
Os que não conhecem Jesus têm de conhecê-lo primeiro.
Jamais Jesus se define a si mesmo como Messias. É a convivência
com ele que fará compreender sua pessoa. A resposta
de Natanael é cheia de dúvidas, mesmo assim Jesus espera e
vai instruindo o discípulo no decorrer dos três anos. Porém
a compreensão final, por parte do discípulo, só se dará após
a morte e ressurreição de Jesus.
O encontro de Jesus e Natanael
A expressão "aproximar-se de Jesus" significa buscar respostas
para suas dúvidas. Pode ser mera curiosidade, mas
também desejo mais profundo de um sentido de vida. Ainda
bem que Natanael não virou as costas. As palavras de
Filipe ditas a Natanael, "vinde e vê", devem ter provocado
um grande impacto no coração do discípulo descrente.
Aproximar-se é aderir à pessoa de Jesus, mesmo que nem
tudo esteja claro, mesmo com dúvidas e incertezas. É a superação
de um relacionamento superficial para outro mais
profundo. Agora, Natanael está disposto a comprovar a afirmação
de Filipe. Jesus toma a iniciativa do diálogo e descreve
o discípulo, mesmo descrente, como "modelo de Israel ".
É um elogio qualificado. O motivo disso é que em Natanael
não existe falsidades nem mentiras, existem dúvidas dentro
dele. O que é diferente.
Eu te vi quando estavas debaixo da figueira
O juízo positivo que Jesus faz deixa Natanael perplexo,
uma vez que estava convicto de que Jesus não O conhecia.
As resistências de Natanael vão caindo por terra. A rigidez
vai dando lugar à abertura. A descrença vai dando espaço à
adesão ao "desconhecido". A resposta à sua pergunta, à primeira
vista, é enigmática: Jesus afirma tê-lo escolhido antes
de o conhecer. O chamado de Natanael não é apenas mérito de Filipe, mas de sua eleição, que já estava feita. A referência
da figueira recorda o profeta Oséias, onde Israel é comparado
como um fruto da figueira nova (Os 9.10). A assembleia
de Israel era comparada como as primícias da figueira.
A alusão à figueira, tão clara para Natanael, continua sendo
enigmática para nós. Uns pensam na figueira como imagem
de Israel; outros, na vida tranquila e cotidiana sob a antiga
figueira (1Rs 5,5). Ao que parece, Natanael se aplicava, embaixo
da figueira, ao estudo das Escrituras, demonstrando
ainda, aqui, sua dúvida, pois o conhecimento de Jesus só
nascerá do encontro com ele.
Alegria e entusiasmo de Natanael
Da mesma forma como os dois discípulos de João Batista,
Natanael também se dirige a Jesus chamando-o de "rabi",
que era um título dado aos mestres de Israel. Ele reconhece,
desde já, que Jesus é o seu mestre. Faz isso publicamente e
está disposto a seguir o seu ensinamento. Porém o horizonte
dele ainda é nacionalista. Jesus é para ele o rei esperado na
restauração de Israel. Jesus corrige seu entusiasmo destorcido.
Declara que isso é pouco ao lado do que significa sua
missão. Apresenta a Natanael uma imagem que ele conhece
através das Escrituras: a escada de Jacó, que une o céu à
terra. Jesus fala a ele do céu aberto. Indica, assim, que a comunicação
com Deus não será ocasional, mas permanente.
O céu simboliza a esfera divina. Ele não se fecha para quem
quer ser discípulo dele.
O lugar da comunicação será a própria pessoa de Jesus.
Outro aspecto que Jesus fala a Natanael é o movimento
contínuo dos anjos de Deus, subindo e descendo por essa escada.
É uma referência ao tema da glória de Deus. Aparece,
assim, a função dos anjos: contemplar a face do Pai. Agora,
o discípulo e a comunidade são convidados a fazer também
a experiência visual: contemplar em Jesus a imagem do Pai:
"Quem me vê, vê o Pai" ao 14,9). Jesus será a realização
máxima do amor do Pai. Ele é a presença do Pai, que não se
pode conhecer a não ser pela experiência. (Texto de Agenor Girardi)
sexta-feira, 10 de julho de 2015
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